Saturday, May 12, 2007

O Cheiro da Alfazema

Sentado debaixo da bela olaia, repleta de flores roxas, observava os campos verdes que se espraiavam em frente do seu olhar cansado. Os olhos, que antes eram de um castanho vivo e intenso tinham agora uma auréola azulada em redor da pupila.
Era um homem alto, ainda forte, mas as costas estavam já curvando-se ao peso dos anos. A bengala já era quase a sua melhor amiga para o trazer ao mundo que existia fora das quatro paredes do seu monte.
Naquele final de um dia de Primavera o Sol ainda brilhava quente.
Amanhã vai estar outro dia de calor, pensou quando percebeu o céu azul mesclado de laranja.
Os dias de Inverno eram penosos porque o obrigavam a manter-se em casa, que ele partilhava com um rafeiro descendente de perdigueiro. Três sobrinhos, os parentes mais próximos, moravam a quase 10 quilometros de distância. Maior distância, nem quantificável, era a dos afectos que nutriam mutuamente.
Tinham conseguido um acordo com a Misericórdia local e as suas consciências tinham ficado serenas quando conseguiram que uma mulher fosse prestar dia sim, dia não a assistência ao tio. Fazia-lhe uma limpeza apressada à casa, tratava-lhe da roupa, preparava-lhe as refeições do dia e deixava alinhavadas as outras.
Ainda não tinha grandes problemas de saúde e para além dos remédios para a pressão arterial elevada e para as artroses que lhe atacavam sobretudo os joelhos, este homem não precisava de outros cuidados.
Recebia, de vez em quando, a visita do compadre, pai do afilhado que não via há mais 20 anos porque tinha emigrado para a Austrália. O homem vinha com mais boa vontade ajuda-lo a passar as horas do que ele a recebê-lo. O sacrifício das palavras forçadas era maior do que o da ausência de gente.
Frequentemente se lembrava da frase de uma mulher que lhe tinha passado pelas mãos, tocado ao de leve no coração mas nunca lhe alcançado a alma: gosto de estar sozinha porque consigo viver bem comigo.
Também ele, resolvidas as dúvidas sobre o objectivo da sua existência e das procuras nunca alcançadas, aprendeu a gostar de estar consigo.
Continuava de olhar fechado, sentindo a brisa que lhe trazia o cheiro da alfazema. Os barulhos da natureza assumiam uma densidade que invadia o corpo e lhe provocava um relaxamento imenso.
Sentiu um leve toque no ombro. O seu corpo estremeceu, não tanto pelo medo que não teve sequer tempo de se instalar mas pela surpresa da presença.
Abriu os olhos e viu uma mulher com uma criança pela mão.
A face pareceu-lhe familiar. Os cabelos castanhos, pelos ombros, enquadravam uma face comprida onde um olhar castanho esverdeado lhe sorria discretamente.
Bom dia, ouviu num espanhol aportuguesado, e sem que o deixasse sequer responder ao cumprimento acrescentou apressada:
Lamento o incómodo mas seria possível dar-me um copo com água para o meu filho? Andamos em passeio, não trouxe nada e ele queixou-se com sede. Como vi esta casa. Desculpe-me o atrevimento!
O homem assentou ligeiramente com a cabeça e fez o movimento de se levantar. Os passos longos e lentos encaminharam-no para a porta e antes de entrar olhou para trás e sugeriu que ela entrasse.
Obrigada, mas podemos esperar aqui, sorriu a mulher.
Até a voz lhe era familiar. Um timbre suave mas imperativo.
A memória, traiçoeira, trouxe-lhe a espanhola por quem um dia, há muitas luas atrás, se perdeu de amores.
Cruzou-se com ela em Rosal de la Frontera porque fazia parte de um grupo de espanholas conhecidas de um camarada de tropa. Quando a olhou sentiu uma imensa vontade em ficar com ela. E ficou!
Entre brigas de posse e momentos de serenidade organizaram os trapos e a vida.
Não casaram mas ela instalou-se na sua casa, na sua cama e no seu coração.
Briguenta e salerosa, animava-lhe os dias com conversas expontâneas e afectividades assumidas.
Achava-lhe graça, nunca lho disse mas ela sabia-o.
Um dia, correu para ele com uma carta na mão.
Vou a Sevilha, o meu primo que emigrou para França vem de férias à Andaluzia e eu quero visita-lo, disse ela alegre e saltitante.
Ainda se lembra de ter ficado paralisado sem saber o que responder.
Ainda se lembra de ter ficado espantado por ela ter decidido ir sem o consultar.
Ainda se lembra de ter registado o facto dela não fazer alusão à sua companhia.
Deixou-a partir sem lhe fazer notar a mágoa e os dias seguintes foram arrumados entre indecisões e certezas.
Recebeu uma carta que hesitou em abrir mas contrariado com a sua fraqueza acabou por saber que a espanhola tinha chegado bem, que o calor a tinha feito desmaiar na Plaza Mayor e que o bendito do primo tinha alugado uma casa com jardim interior e janelas engalanadas de ferro forjado ainda do tempo da guerra civil. Tudo muito bonito e até a madresita iria juntar-se à família para comemorar.
Carinõ, te amo! acabou ela a missiva.
Ele encolheu os ombros quando se findou o texto.
Um dia, a decisão acordou com ele e sentado no beiral da casa, traçou uma cruz no chão de terra batida. Depois, arrumou duas malas com os seus pertences mais pessoais, fechou as janelas e as portas, carregou a cruz às costas e partiu para Norte.
Soube que ela o procurou. Soube que ela não soube onde ele estava e soube que ela partiu surpresa e triste. Deixou de saber dela porque a tal se obrigou mas nunca conseguiu afastar a silenciosa presença da sua memória mais profunda.
Nós vivemos em Malaga, sou casada com um português que me tem mostrado o vosso país, explicou a jovem mulher enquanto esperava pela água.
O homem rodou sobre o tronco e estendeu-lhe o copo com a água.
Obrigada, sorriu agradecida, até um dia!
Deu dois passos e ainda se voltou para exclamar:
A minha mãe tinha um carinho muito grande por esta terra. Dizia-me que aqui a cheiro da alfazema decora os nossos sentidos nos finais de dia de Primavera!
O homem sorriu, o olhar brilhou e levantou a mão para dizer um adeus.
Depois voltou-se no sentido contrário e quando os olhos poisaram de novo sobre a natureza sentiu que os campos verdes com cheiro de alfazema também podem ser desertos imensamente áridos.
Com as costas da mão afastou duas lágrimas que teimavam em marcar-lhe a cara.

2 comments:

Papoila said...

Hoje nesta lua li um conto maravilhoso com o perfume de alfazema... Ai os campos de alfazema.
Beijo

Lúcio Ferro said...

Triste e ao mesmo tempo bonito. Tocou-me e fez-me lembrar coisas que... Enfim, gostei bastante, parabéns.

Beijinho